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"Por favor, morde-me! " - Compreender e lidar com as dentadas na creche

"Por favor, morde-me! " - Compreender e lidar com as dentadas na creche

A propósito de uma questão colocada no colégio da minha filha, deixo-vos aqui uma pequena reflexão sobre as dentadas em contexto de creche. Antes de mais, penso que posso dizer sem errar, que é consensual para os técnicos de saúde mental e acredito que também entre os pediatras, que as dentadas e os aranhões na escola são uma fase perfeitamente normal (e eu acrescentaria desejável) no desenvolvimento infantil. Acontece, nestes padrões de normalidade, mais ou menos até aos 3 anos (mas a fase dos 2 anos é habitualmente onde se manifesta com mais frequência). Porque é que acontece? Entre os 12 e os 24 meses, a criança encontra-se em plena fase de omnipotência, acreditando que é o centro do mundo. O mais importante da vida, é a gratificação dos seus desejos e necessidades físicas e psicológicas. Aliado à fase de descoberta, curiosidade e enorme aprendizagem em que se encontra, partilhar os objectos de interesse torna-se uma tarefa quase impossível. Por outro lado, os estados emocionais são para ela ainda um mistério. E ainda não consegue expressar zanga e frustração sem ser através de intensas birras ou de comportamentos que aos nossos olhos parecem muito agressivos. Todos estes factores combinados, fazem da dentada, dos empurrões e/ou aranhões a forma possível da criança se expressar em determinados momentos. Se dói a quem recebe a dentada? Dói. Mas o objectivo da criança não é necessariamente atingir o outro mas apenas libertar ou manifestar o que está em si. Frequentemente, quando se apercebe que provocou dor, a criança começa a chorar assustada com o seu próprio comportamento. O adulto que assiste a uma dentada ou empurrão ou qualquer outra forma mais agressiva de expressão (e estamos a falar naturalmente de crianças até aos 3 anos) tende a pensar que a criança morde com a intenção de magoar, mas essa intenção, para já, não existe. Percebendo o mecanismo, é mais fácil para um pai de uma criança mordida ou para todos os adultos que se encontram por perto, reagir de forma mais tolerante à situação. Assim, um momento que pode tornar-se de grande tensão, revela-se apenas um momento de grande aprendizagem para todos. Uma questão de expressão Em "O Grande Livro dos Medos e das Birras", o pediatra Mário Cordeiro explica as dificuldades de expressão na criança e as suas consequências no comportamento referindo que

"a linguagem receptiva média de uma criança com 2 anos é de milhares de palavras, enquanto a linguagem expressiva é de apenas 150 a 200 palavras. Só este dado causaria uma enorme frustração (um pouco à semelhança dos adultos que perdem a fala por qualquer razão). Tentar responder a uma frase complexa, que é entendida pelo bebé, mas não tendo vocabulário suficiente ou imaginação gramatical para poder expressar os sentimentos ou verbalizar o que quer dizer, é muito traumatizante. E, falhando a linguagem verbal, só resta a linguagem corporal... agravado pelo desatino que existe pela nova frustração de não poder expressar verbalmente o que desejaria dizer." (Mário Cordeiro, 2013)

Vamos imaginar a seguinte situação, uma criança está a brincar com um carrinho... aquele carrinho novo do colégio que tinha estado nas mãos de outro menino e só agora teve a oportunidade de agarrar. Começa a estudar e a experimentar o brinquedo e simultâneamente começa a sentir o seu entusiasmo crescer com a descoberta e com a experimentação. Agora, aproxima-se outra criança também ela interessada no brinquedo (que ainda por cima é novo!) e começa a tentar tirar-lho (porque não? Encontra-se em plena fase de "quero, posso e mando", certo?). Perante essa situação, poderíamos imaginar um diálogo entre as duas crianças: - Este brinquedo é muito giro, fiquei muito tempo à espera de o ter. Quero brincar com ele mais um bocadinho. Estou mesmo na fase em que estou a descobrir as coisas todas que dá para fazer com ele. Ainda por cima, ainda não aprendi a partilhar. Se mo tentares tirares, vou ficar muito zangada. - Eu também quero experimentar esse brinquedo. Parece giro e divertido. Principalmente porque te vejo tão feliz com ele. Ainda não aprendi a esperar e, quando tenho que esperar por alguma coisa, fico muito irritado. Vou ficar zangado se não mo deixares agarrar. Qual é o diálogo possível? Uma criança diz - Não!. A outra insiste - Quero!. Resultado? Uns empurrões, uma dentada e choro! Tudo em poucos minutos (às vezes menos). Nesta fase, o uso de força física substitui a comunicação oral, que ainda não consegue acompanhar o raciocínio e as emoções. Impedir as mordidas? Acreditar que é possível por parte da equipa pedagógica que acompanha o grupo, impedir que isso aconteça é ilusório e muito distante da realidade da interacção infantil. Quando duas crianças pequeninas brincam em conjunto (o que, em certas fases do desenvolvimento, só por si já é uma proeza), uma interacção pacífica muda de "figura" numa fracção de segundos e sem que por vezes seja possível para o adulto prever. Ainda bem que assim o é. Imaginem este mundo, se impedíssemos o Ser Humano de experimentar os seus limites e os do outro, quando ainda é pequeno e sem que isso represente danos de maior para nenhum das partes! Será assim tão desejável impedir completamente as mordidas, empurrões e aranhões? Imagine, por exemplo, o que é para uma criança confrontar-se com a agressividade dos outros apenas aos 6 anos. Aí, possivelmente já sob a forma de agressão mais elaborada e organizada. Este "ataque feroz" pode passar por um "não gosto de ti", "não quero ser teu amigo", "és gorda ou feia", etc. Uma criança que nunca foi "atacada" não saberia que aquelas acções reflectem muito mais o outro e aquilo que ele está a sentir (zanga, frustração, medo, tristeza) do que a definem a ela. Não tendo levado "dentadas" quando podia, mais tarde, fica a mercê de palavras e comportamentos (potencialmente) devoradores da sua auto-estima. Mais ainda, se crescer sem "morder" ninguém, poderia tardiamente descobrir em si mesma uma agressividade com a qual ela não aprendeu a lidar. Essa agressividade desconhecida pode ser também demasiado pesada para ela carregar. Por um lado, é importante que a criança esteja preparada para receber um ataque mantendo a sua auto-estima intacta e, por outro, é fundamental que fique a conhecer os seus limites e aprenda a gerir a sua própria agressividade. Claro que os pais preferem, em certa medida, negar a existência de agressividade nos seus filhos. Mas não esqueçamos que a agressividade tem muitas formas de se manifestar e piores ainda de se não manifestar. Importante É frequente nesta fase as crianças adoptarem comportamentos de desafio, quase que como dizendo "por favor morde-me, porque eu não sei ainda até onde posso ir, e também não sei até onde tu podes ir". A saúde leva-os a querer aprender a vida. Isso é tão bom! Assim tenham os adultos a capacidade de entender estas crises, pelo potencial de aprendizagem que trazem à criança. E ambos aprendem que por vezes, este mundo dói, e que, por vezes, fazemos doer o mundo. É por essa razão que, enquanto podemos, o melhor é aprender a defender-mo-nos dos outros e de nós mesmos. O nosso presente e o nosso futuro agradecem!"

Texto retirado de: http://anaguilhas.blogspot.pt/2014/09/por-favor-morde-me.html

Fotografia retirada de: http://www.justrealmoms.com.br/as-10-dicas-para-lidar-com-filhos-que-mordem-chutam-ou-agridem-as-outras-criancas/


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